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Algumas consequências da não existência do livre arbítrio

Há algumas semanas, discutimos um pouco sobre determinismo e livre arbítrio. Em poucas palavras, determinismo é a noção de que tudo que acontece é consequência necessária de eventos anteriores. Livre arbítrio é a noção de que seres racionais têm capacidade de escolher entre dois ou mais "caminhos" possíveis.

Cada escolha, uma renúncia; isso é a vida.

Argumentamos que, se o determinismo é real, não é possível haver livre arbítrio. O determinismo implica, por exemplo, que um demônio superinteligente que soubesse o estado de cada mínima partícula de matéria do universo em qualquer momento do século XV seria capaz de prever o descobrimento da América, a Revolução Francesa e a chegada do homem à lua. O demônio seria inclusive capaz de prever que eu estaria escrevendo este texto agora.

Como seria possível o demônio prever isso, se isso depende da minha vontade? Se eu tinha a opção de escrever ou não, como ele poderia prever que eu escolheria escrever?

A resposta, claro, é que eu não tinha opção. Segundo o determinismo, só existe um caminho que o universo pode seguir. Desde a criação do universo, as leis naturais, inquebráveis, regeram cada mínima porção de matéria e energia. Por mais que o mundo pareça um caos aos nossos olhos matematicamente incompetentes, tudo está seguindo o único caminho que poderia seguir, comandados por leis físicas eternas que não abrem brecha para segunda interpretação.

Inclusive o cérebro humano.

O argumento é: o universo é regido por leis naturais incoercíveis. Essas leis garantem que tudo vai acontecer de determinada maneira e que nada pode acontecer de outra forma (as leis naturais são exatas). Os pensamentos e sentimentos humanos são produto do cérebro (não há alma ou qualquer entidade metafísica ligada à vida ou à humanidade). O cérebro faz parte do universo, portanto, está sujeito às mesmas leis. Assim, os sentimentos, pensamentos e comportamentos humanos seguem as mesmas leis naturais que regem todo o universo, e tudo que fazemos é predeterminado por elas.

Pesado...

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É claro que existem centenas de anos de discussões filosóficas sobre a afirmação de que o determinismo impossibilita o livre arbítrio. Primeiro se questiona a própria epistemologia do determinismo: é possível saber se o mundo é determinista ou não? Como provar ou descartar logicamente o determinismo? Neste ponto, a filosofia pega muito emprestado das ciências naturais, principalmente da física, e a esperança é uma espécie de teoria geral sobre tudo que possa responder essa questão.

Depois se questiona o próprio determinismo, uma doutrina que perdeu força desde o surgimento da mecânica quântica. A mecânica quântica trabalha com partículas subatômicas que seguem leis naturais, mas cuja trajetória é calculada em probabilidades; é como se, sob as mesmíssimas influências, uma partícula pudesse ir para A ou para B. Neste caso, as leis naturais não seriam deterministas e existiria a possibilidade de mais de um futuro para o mesmo presente.

Além disso, questiona-se a incompatibilidade do determinismo com o livre arbítrio. Espinosa, por exemplo, afirma que tudo é necessário e que nada é possível: tudo o que acontece tem que acontecer, nada pode acontecer. Ao mesmo tempo, o filósofo acredita que o ser humano tem capacidade de escolha. Ou seja, o mundo seria determinista, mas ao mesmo tempo os seres humanos teriam livre arbítrio.

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O livre arbítrio tem grande importância para a ideia de responsabilidade moral. Como podemos punir uma pessoa que cometeu um crime, sendo que ela não teve escolha? Da mesma forma, qual o sentido de parabenizar alguém que conquistou um grande feito, se isso era previsto pelas leis do universo já desde seu surgimento?

Mais do que isso, a não existência do livre arbítrio põe em xeque nossa própria identidade. Quem sou eu, se nem minhas escolhas são minhas, se sou um fantoche das leis naturais? A noção de que toda nossa vida é uma mera sequência de reações químico-físicas sobre as quais não temos controle nenhum nos iguala a um inseto, a uma árvore e a uma gota de água. Daí para o niilismo é um passo curto.

O problema é que é um absurdo não punir um homicida. Mesmo se estivermos certos de que seu crime é consequência das leis naturais regendo o universo, seria um absurdo deixar livre um ser humano que assassinou outro.

Pois, ainda que estivéssemos certos de que o determinismo é verdadeiro (não estamos, claro), no mundo real essas considerações filosóficas são abstratas demais. Ninguém com fome ou em dor quer discutir filosofia.

Então, se não podemos deixar criminosos impunemente livres, qual é o ensinamento prático que poderíamos tirar da possível não existência do livre arbítrio?

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O primeiro, talvez, seja que o pensamento racional e mesmo as ciências naturais nem sempre são simplesmente aplicáveis na vida real. A constatação de que um crime ocorreu porque estava previsto nas leis universais não automaticamente tira a culpa do criminoso, assim como a observação de que determinado remédio diminui o colesterol não significa que ele seja uma boa opção para tratar humanos com dislipidemia. O mundo real é complexo demais para que consigamos explicá-lo completamente de forma lógica.

O segundo ensinamento é que muitas vezes fazemos coisas sob massiva influência de fatores externos e ingovernáveis por nós. Mesmo que o determinismo não seja verdadeiro, sabemos que nossas ações são produto de uma complexa interação de predisposições genéticas e fatores ambientais sobre os quais não temos jurisdição nenhuma. Nossos sentimentos, pensamentos e comportamentos, se não completamente, pelo menos em grande parte estão fora do nosso controle.

Contudo, quando alguém comete um erro, somos mais inclinados a reputá-lo a um "defeito" reprovável de personalidade, e não a um fator situacional (erro fundamental de atribuição). Considerar a não existência do livre arbítrio pode nos tornar mais conscientes desse viés. E, mais conscientes desse viés, entendemos que talvez nós, naquelas condições, cometeríamos o mesmo erro. E assim, podemos criar a prática de olhar quem erra com compaixão, e de vê-lo como alguém que precisa de ajuda, não de punição. Como disseram os Raimundos, "se todo excesso fosse visto como fraqueza, e não como insulto, já me tirava do sufoco".

Essa mesma consciência pode ser aplicada quando alguém ou nós mesmos acertamos. Quando conseguimos um triunfo significativo, é esperado e saudável que fiquemos felizes e que comemoremos. Mas também é saudável que tenhamos a consciência de que pelo menos grande parte do trabalho foi "feito" por circunstâncias externas a nós. Como disse Newton (e outros antes dele), "se consegui enxergar mais longe, foi porque me apoiei sobre os ombros de gigantes".

E a sabedoria de que nós, humanos, apesar da grandiosidade de nossa raça, estamos sujeitos às mesmas leis naturais que todos os outros seres vivos e todo o universo, e que mesmo os aspectos definidores de nossa espécie, como a racionalidade e o cérebro superdesenvolvido, estão sujeitos a essas mesmas leis, essa sabedoria deve nos ajudar a nos ver mais como uma pequena parte do próprio universo, e não algo separado dele. As fronteiras entre o eu e o outro são adelgaçadas e nós percebemos que tanto o eu como o outro somos a mesma coisa: o universo. E assim podemos estender nossa compaixão a todos os seres humanos e não humanos e compartilhar a sua dor. Como disse John Donne, "não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Por fim, que criemos a consciência de que o niilismo é uma escolha fácil demais para ser uma escolha boa. É fácil demais pensar: se eu não tenho influência no mundo, se não tenho governo nem sobre mim nem sobre nada mais, se tudo que acontece continuará acontecendo independentemente de qualquer decisão minha (porque na verdade não há decisão), qual é, então, o sentido de continuar vivendo? Se tudo que deve acontecer vai certamente acontecer, por que não me sentar e esperar que o destino se desdobre diante de meus olhos? Se nada que eu penso vai mudar nada no mundo, por que continuar me esforçando?

O problema é que nós não sabemos, e é improvável que em algum momento saibamos completamente, o futuro. Ainda que o destino do universo esteja selado, ainda que tudo que acontece a cada momento tenha sido já previsto desde o Big Bang, nós não sabemos qual destino é esse. Nós não sabemos qual o nosso destino. Não sabemos o que o universo preparou para nosso futuro.

O porvir já foi escrito, mas, como não podemos vê-lo, é como se não tivesse sido.

Assim, de uma forma ou outra, somos nós quem construímos nosso destino a cada instante, com nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos, adequando-o aos desígnios milenares do Big Bang.

Figura por Alex Carvalho.


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