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Os bons são maioria

Uma coisa que me deixa um pouco emocionado desde que eu sou criança são os automóveis desviando numa pista quando ouvem a sirene de um carro de bombeiros ou uma ambulância.

É algo bem pequeno, apenas andar alguns metros com seu carro, mas é a maior parte das vezes um gesto de genuíno altruísmo. Todo mundo se apressa para sair do caminho, para dar lugar à equipe apressada em salvar a vida de alguém que muito provavelmente nenhuma daquelas pessoas conhece. Nem os bombeiros nem os motoristas desviantes.

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Manter-se informado do mundo dá uma azia danada. É violência na favela, misoginia na Casa Branca, HIV na África, corrupção em Brasília. Parece que vivemos em um mundo extremamente hostil, em que cada um está apenas por si, e que estamos em todo momento correndo grave perigo.

Vendo as notícias, convencemo-nos de que o mundo está pior do que nunca. Como cantavam Tião Carreiro e Pardinho, "mundo velho está perdido, já não endireita mais".

E aí alguns pedem intervenção militar, sob o argumento historicamente indefensável de que não havia corrupção ou de que a economia melhoraria sob o governo das Forças Armadas, ou qualquer outro parecido. Uma parte das pessoas apoia a ideia e é esculachada por outra parcela da população, o que gera ódio e ressentimento em alguns dos que defendem a intervenção, que respondem violentamente àqueles que os esculacham, gerando um círculo vicioso de ódio e defesa irracional de ideologias. Nesse momento, é claro, ninguém muda de ideia: o debate é baseado na hostilidade e na ironia mútua.

Parece que nem vemos que, muito provavelmente, aquelas pessoas que defendem a intervenção militar não defendem o estado de exceção nem a extinção de todos os direitos políticos, pelo menos não como fins em si, muito menos a tortura, sob qualquer hipótese. A maioria dessas pessoas acredita sinceramente que uma intervenção seria uma opção viável para que nossos filhos nasçam em um país mais igualitário, mais feliz, mais próspero.

E, se eles estão tão redondamente enganados, o melhor a fazer é tentar demonstrar isso a eles, de forma fraternal e didática. O pior a fazer é implicitamente os declarar adversários, e fazer do debate uma briga.

Afinal, na grande maioria das vezes, serão duas pessoas lutando pela mesma coisa: um futuro mais humano, mais agradável, mais rico. Só que com ideias diferentes sobre com que meios alcançar esse fim.

A pessoa que apoia uma intervenção militar provavelmente também afasta o carro para os bombeiros passarem.

(Devo deixar claro que não apoio a ditadura militar. Devo deixar bem claro que entendo que existem pessoas que sofreram ou que são parentes ou amigos de pessoas que sofreram abusos terríveis naquela época, e que talvez lhes cause ojeriza a simples menção de uma "ditadura militar". Não quero de forma alguma diminuir o terror de qualquer estado de exceção com essas características. Ainda assim, acredito realmente que a maioria das pessoas não defende a tortura ou o estado de exceção, mas a ilusão de progresso econômico e de inexistência de corrupção.)

Da mesma forma, os militantes dos partidos de extrema esquerda, em sua maioria, não apoiam terríveis estados de exceção comunistas. Eles apoiam uma forma de governo que, acreditam, sejam o meio de chegar a um futuro mais justo, mais tranquilo, mais deleitável.

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No meu Facebook, a maior parte das pessoas que vejo parece ser "de esquerda". Mais de uma vez vi pessoas dizerem algo como "se você for bolsominion, pode desfazer nossa amizade".

Ainda bem que a maioria dos nossos "amigos" de Facebook são apenas conhecidos. Imagina perder um amigo de verdade porque ele vota em um candidato do qual você não gosta.

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Discutir política muitas vezes dá azia também. Mas o problema não é discutir a política em si. O problema é que as pessoas levam o debate para o lado pessoal. Defender Lula ou Bolsonaro se torna uma ofensa pessoal a quem é contra algum deles.

Sempre que alguém defende uma posição política da qual eu discordo veementemente, nas raras ocasiões em que discuto política, tento lembrar que aquela pessoa não defende a corrupção ou a misoginia ou a ditadura militar ou a ditadura comunista. Em essência, muito provavelmente aquela pessoa defende um futuro mais glorioso, mais equânime, mais bonito.

Eleitores de Bolsonaro e de Lula desviam juntos seus carros para os bombeiros passar.

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Eu me lembro de uma propaganda da Coca-Cola em que a mensagem final era algo como "há razões para acreditar: os bons são maioria". Eu já tive essa dúvida, mas quanto mais o tempo passa mais eu tenho convicção de que essa frase é verdadeira. Os bons são maioria. Os que desviam seus carros são maioria.

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Eu estudo Medicina. No Hospital de Clínicas, todos os dias chegam velhos e jovens, homens e mulheres, bandidos e policiais. Uma equipe enorme de pessoas se mobiliza para atendê-los. A quantidade de dinheiro que gastamos com um único paciente é enorme.

Pode ter certeza, se você chegar ao HC precisando de ajuda, secretários, médicos, enfermeiros, psicólogos vão deixar tudo de lado para lhe ajudar, e o governo investirá dezenas de milhares de reais (ou mais) em sua saúde. E ninguém vai perguntar para quem você vota, quanto você paga de imposto ou o que você fez para se machucar tanto.

O mundo em si não é hostil nem amigável. O mundo é impassivelmente indiferente a nós, seres humanos. Mas os seres humanos, eles sim, em geral são muito amigáveis. Se você estiver precisando de ajuda e encontrar um ser humano qualquer, provavelmente ele estará disposto a lhe ajudar.

Os bons são maioria. E, pela esquerda ou pela direita, há motivos para supor que um mundo mais igualitário, mais feliz, mais próspero, mais humano, mais agradável, mais rico, mais justo, mais tranquilo, mais deleitável, mais glorioso, mais equânime, mais bonito esteja por vir.

Figura de TKnoxB, de Chemainus, Canadá.


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