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As drogas no cérebro #1: Neurotransmissores e sinapses

Nos anos 70, Raul Seixas lançou uma música sobre os pequenos aborrecimentos pelos quais passamos cotidianamente, Eu também vou reclamar. Um de seus versos dizia assim: "Dois problemas se misturam, a verdade do universo e a prestação que vai vencer".

Eu vejo nessa frase um aspecto muito particular dos seres humanos dentre todos os outros seres vivos: nós não nos preocupamos apenas com comida, reprodução e integridade física, que são as coisas do mundo material, "a prestação que vai vencer"; nós também queremos saber quem somos, aonde vamos e por que estamos aqui, nossos pensamentos extrapolam a matéria e sonhamos com "a verdade do universo". Temos necessidades físicas, como todos os outros animais, mas também necessidades mentais ou "espirituais" que me parecem essencialmente humanas.

Movidos por essa necessidade tão somente humana de procurar significado e explicação para o mundo, filosofamos, desenvolvemos as ciências, produzimos e consumimos arte... E usamos drogas:

"O ser humano tem muito em comum com outros animais — as necessidades básicas de se alimentar, beber e dormir, por exemplo —, mas há outras necessidades mentais e desejos emocionais que talvez sejam exclusivamente nossos. Viver apenas o dia presente é insuficiente para um ser humano; precisamos de transcendência, [...] de significado, compreensão e explicação; precisamos enxergar padrões gerais em nossa vida. Precisamos de esperança, [...] para ir além de nós mesmos, seja com telescópios e microscópios e com a nossa sempre florescente tecnologia, seja em estados de espírito que nos permitam viajar para outros mundos, transcender nosso ambiente imediato. Precisamos desse tipo de afastamento tanto quanto de algo que nos absorva na vida". – Oliver Sacks, neurologista inglês. (1)

Figura 1. Fisicamente, um pequeno passo; metafisicamente, um salto gigantesco.

Usadas para recreação ou de forma ritualística ou terapêutica, as drogas estiveram presentes em todas as culturas. Séculos e milênios atrás, os nativos andinos mascavam coca, os nativos amazonenses tomavam ayahuasca, os navajos usavam peiote na América do Norte e os citas faziam "sauna de maconha" na Ásia Central. E, claro, os romanos bebiam vinho.

Hoje, começamos uma série que abordará os mecanismos neurobiológicos de ação de diversas drogas psicotrópicas utilizadas pelos humanos.

Porém, antes de começarmos a falar de cada droga em si, faremos uma introdução explicando brevemente o funcionamento do sistema nervoso central (SNC) humano, especialmente do ponto de vista dos neurotransmissores e das sinapses, o principal alvo dos psicotrópicos. Nosso objetivo não é nos aprofundarmos nesse tema, mas somente nos munirmos das ferramentas necessárias para entender a neurofisiologia básica das drogas no cérebro.

1. A rede de fios elétricos do cérebro

Os neurônios são como fios que transportam sinais elétricos. Esses sinais elétricos levam informação obtida por meio de nossos órgãos sensoriais para nosso centro nervoso, onde os dados são processados e uma resposta adequada é gerada e enviada para nossos órgãos motores. A função básica de um centro nervoso é essa: processar informação obtida pelos sentidos, gerando ações adequadas para os órgãos motores.

Para cumprir essa tarefa, os neurônios são especializados em transmitir e estocar informação. A transmissão é essencial, claro, para gerar imediatamente as respostas necessárias frente às intempéries do ambiente: a fome leva à caça, o perigo leva à fuga, o tesão leva ao acasalamento. O estoque de informações, a memória, também é importante para que evitemos situações que no passado já se mostraram perigosas e busquemos situações que sabemos serem favoráveis a nós.

O neurônio estoca e transmite informação através de sinais químicos. Os neurotransmissores servem para passar informação de um neurônio a outro. Aqui, uma andorinha não faz verão. Memórias e pensamentos complexos como os humanos envolvem uma pletora de neurônios. Basicamente, esses sinais químicos comandam nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos.

As sinapses são as conexões entre os neurônios. Os neurônios não se comunicam fisicamente, um encostando no outro. Entre um neurônio e outro há um espaço, a fenda sináptica, onde um neurônio pré-sináptico envia sinais químicos (neurotransmissores) a um neurônio pós-sináptico, que recebe esses sinais por meio de seus receptores e reage a eles de diversas formas: ativando ou inibindo enzimas, ativando ou inibindo genes, aumentando ou diminuindo a permeabilidade de sua membrana plasmática etc.

As sinapses no nosso cérebro são assimétricas: a informação não vai e volta pelo mesmo caminho. O neurônio tem estruturas especializadas em receber sinais, os dendritos, e outras especializadas em enviar estímulos, os axônios. O neurônio também tem um corpo celular, o pericário, que coordena as funções do neurônio e guarda seu núcleo.

De fato, as sinapses mais comuns de nosso SNC são as axodendríticas: o sinal passa do axônio do neurônio pré-sináptico para o dendrito do neurônio pós-sináptico. Mas também existem as menos comuns sinapses axossomáticas (de um axônio para um soma, outro nome para o pericário) e axoaxônicas (entre os axônios de dois neurônios).

Figura 2. Os axônios dos neurônios podem ter metros de comprimento. Para preservar e aumentar a velocidade do sinal elétrico que viaja por ele, o neurônio recorre às "células de Schwann", que formam a bainha de mielina, uma forma de isolante ao redor do fio axonal. Entre as células de Schwann há uma pequena porção de axônio sem mielina, denominada "nodo de Ranvier". A parte distal do axônio é ramificada, o que permite sua conexão com vários outros neurônios. A parte mais distal do axônio, que é onde a sinapse acontece, é chamada "botão terminal" ou "terminal axônico".

2. Cascata de transdução de sinais

A neurotransmissão não é simplesmente a comunicação entre um axônio e um dendrito. A informação compartilhada na fenda sináptica gera uma série de sinais no neurônio pós-sináptico, que em última análise modifica sua própria expressão genômica, ou seja, os segmentos de DNA que serão transcritos em RNA e traduzidos em proteínas.

Vamos tomar o exemplo da dopamina (DA), uma catecolamina muito importante em doenças como o Mal de Alzheimer e a esquizofrenia e no mecanismo de ação da cocaína, do metilfenidato (Ritalina), das anfetaminas e até da cafeína.

A DA é um neurotransmissor cujos receptores são acoplados à proteína G (diferentemente do glutamato, por exemplo, cujos receptores podem ser acoplados a canais iônicos). A dopamina liberada do terminal axônico de um neurônio serve como primeiro mensageiro, levando um sinal do neurônio dopaminérgico pré-sináptico ao receptor de DA acoplado à proteína G do neurônio pós-sináptico.

Esse receptor estimulado pela DA muda sua conformação, ligando-se a uma proteína G, que por sua vez liga-se a uma enzima. Essa enzima é "ativada" ao ligar-se ao complexo receptor-proteína G, produzindo o segundo mensageiro: monofosfato de adenosina cíclico (cAMP), no nosso exemplo.

Esse segundo mensageiro, produzido rapidamente após a ligação da DA a seu receptor pós-sináptico, pode ativar outras enzimas, as proteinoquinases, que servem como terceiro mensageiro. As proteinoquinases, por sua vez, agem adicionando grupos fosfatos a outras proteínas, ativando ou desativando-as. Essas proteínas ativadas ou desativadas pelas proteinoquinases podem ser parte de canais iônicos, enzimas, ou fatores de transcrição, por exemplo.

Fatores de transcrição são proteínas capazes de estimular a transcrição de um gene, um gene "precoce". Esses fatores de transcrição ativados por proteinoquinases servem como quarto mensageiro, levando à expressão de um gene específico.

Através dessa cascata de sinais, o neurônio muda sua própria expressão gênica, o que a princípio pode modificar profundamente seu funcionamento.

Esse gene precoce é transcrito em RNA e traduzido em proteína. Essa proteína pode ser outro fator de regulação gênica, ou seja, uma molécula capaz de inibir ou estimular a expressão de outros genes "tardios", agindo como quinto mensageiro. Desta forma, os efeitos da neurotransmissão não se limitam ao imediato, mas mostram-se também tardios e duradouros.

Figura 3. A cascata de transdução de sinais começa com um neurotransmissor no exemplo (mas pode também ser hormônio ou neurotrofina). O segundo mensageiro é o cAMP; o terceiro, a proteinoquinase ativa; o quarto, um fator de transcrição; o quinto, uma proteína gerada pela ativação de um gene precoce. Assim, a comunicação interneuronal se mostra muito mais complexa e de efeitos muito mais duradouros e importantes do que se concebe a princípio ao imaginar uma sinapse.

3. Neurotransmissores

Para entender o mecanismo de ação das drogas no cérebro é fundamental conhecer alguns neurotransmissores. Falaremos deles em maior detalhe ao explicar o funcionamento de cada psicotrópico.

Monoaminas

Além da dopamina, há dois outros neurotransmissores importantíssimos da família das monoaminas no cérebro: a 5-hidroxitriptamina (5-HT), mais conhecida como serotonina (SER), foco da ação dos alucinógenos, e a noradrenalina (NA).

A dopamina é produzida a partir do aminoácido tirosina. Depois de sintetizada, é bombeada para dentro de vesículas por um transportador vesicular de monoaminas (VMAT) e estocada nessas vesículas até ser utilizada. VMATs são o foco da ação das anfetaminas.

Quando um potencial de ação despolariza o terminal axônico de um neurônio dopaminérgico, as vesículas se fundem à membrana plasmática, liberando seu conteúdo, ou seja, DA, na fenda sináptica. Daí, há três caminhos possíveis para a DA.

Primeiro, ela pode se ligar a um receptor de DA, geralmente pós-sináptico, gerando todas aquelas respostas da cascata de transdução de sinais. Ela também pode se ligar a um receptor pré-sináptico, no próprio neurônio dopaminérgico, exercendo função de feedback negativo (diminuir quantidade de dopamina liberada). Segundo, ela pode ser degradada por enzimas antes de conseguir se ligar a um receptor. A principal enzima para esse serviço é a catecol-O-metiltransferase (COMT). Terceiro, ela pode ser recaptada pelo neurônio pré-sináptico através do transportador de dopamina (DAT), uma bomba de recaptação que carrega a DA da fenda sináptica de volta para o neurônio dopaminérgico, onde ela é estocada novamente em vesículas para ser utilizada posteriormente ou destruída por outra enzima, a monoamina oxidase (MAO). Nos dois últimos casos, a DA não terá produzido nenhum dos efeitos que se espera dela ao se ligar ao seu receptor específico: o neurotransmissor não ativa a cascata de sinais se antes disso for degradado ou recaptado pelo neurônio pré-sináptico.

A DA é o neurotransmissor mais emblemático quando o assunto é drogas de abuso.

A serotonina é produzida a partir do aminoácido triptofano, e também estocada em vesículas por um transportador vesicular. Depois de liberada no terminal axônico, pode se ligar ao seu receptor, ser degradada por uma MAO extracelular, ou ser bombeada de volta para o neurônio serotoninérgico por um transportador de serotonina (SERT).

Assim como a DA, a noradrenalina (norepinefrina) é produzida a partir da tirosina. De fato, os neurônios noradrenérgicos primeiro convertem tirosina em DA, e depois DA em NA, usando a enzima dopamina beta-hidroxilase. Na fenda sináptica, a NA pode se ligar a um receptor (os receptores de monoaminas são ligados à proteína G), ser degradada pela enzima COMT, ou ser recaptada pelo transportador de noradrenalina (NAT).

Figura 4. Temos aqui uma sinapse. A. Neurônio pré-sináptico; B. Neurônio pós-sináptico; 1. Mitocôndria, a "fábrica de energia" do botão axonal, que também abriga MAO em neurônios noradrenérgicos; 2. Vesícula contendo neurotransmissor (DA, NA, SER, glutamato etc.); 3. Receptor pré-sináptico; 4. Fenda sináptica; 5. Receptores pós-sinápticos; 6. Canal de cálcio; 7. Vesícula fundida à membrana plasmática, liberando neurotransmissor; 8. Transportador de neurotransmissor (DAT, NAT, SERT, GAT etc.).

Glutamato e GABA

O glutamato não é produzido a partir de aminoácidos, como as monoaminas, mas é um aminoácido em si, o principal neurotransmissor excitatório do nosso SNC. O glutamato usado na neurotransmissão (e não na produção de proteínas) é obtido a partir da glutamina das células da glia (células do tecido neural que suportam e nutrem os neurônios). Hoje, acredita-se que o glutamato possa estar envolvido na fisiopatologia da esquizofrenia e também nos efeitos de algumas drogas, como nas alucinações visuais do LSD.

Depois de liberado na fenda sináptica, o glutamato interage com seus receptores pós-sinápticos e é recaptado por meio do transportador de aminoácidos excitatórios (EAAT) pelas células gliais e, em menor grau, pelos neurônios sinápticos. O glutamato sináptico não sofre ação enzimática, como as monoaminas. Recaptado pelo EAAT, o glutamato é convertido em glutamina, e depois transportado para o neurônio glutamatérgico e novamente convertido em glutamato.

Os receptores glutamatérgicos são em grande quantidade e variedade. Alguns são ligados à proteína G, outros são ligados a canais iônicos. Alguns deles, inclusive o famoso N–metil-D-aspartato (NMDA), necessitam de um cotransmissor (e.g. glicina), além do glutamato, para funcionar.

Figura 5. O glutamato liberado pelo neurônio glutamatérgico e recaptado pela célula da glia.

O ácido gama-aminobutírico (GABA) é produzido a partir do glutamato e é o principal neurotransmissor depressor do SNC. O sistema GABAérgico é alvo da ação de drogas como o álcool, os benzodiazepínicos e os ansiolíticos.

Depois de produzido, o GABA é bombeado para vesículas, assim como as monoaminas, por meio do transportador vesicular de aminoácidos inibitórios (VIAAT), onde é armazenado até seu uso. Após liberado na fenda sináptica, o GABA se liga a receptores ligados à proteína G ou a canais iônicos, é destruído pela enzima GABA transaminase, ou recaptado pelo transportador de GABA (GAT) pré-sináptico.

Sistema endocanabinoide

Conheça um dos conjuntos de moléculas mais emblemáticos da fisiologia humana: o sistema endocanabinoide. Falaremos dele em mais detalhe quando falarmos da cannabis, mas quero de antemão traçar algumas considerações sobre esse fascinante objeto de estudo.

Esqueça tudo que falamos antes sobre os outros neurotransmissores baseados em aminoácidos: os endocanabinoides são compostos lipídicos. Lembra o estoque de monoaminas em vesículas? Os endocanabinoides não são estocados, mas produzidos sob demanda, na hora e de acordo com a necessidade, a partir dos fosfolipídios da membrana do terminal axônico (lembremos que a membrana celular é formada por uma bicamada de lipídios). Lembra-se da transmissão sináptica clássica, ou anterógrada: neurônio pré-sináptico, fenda sináptica, neurônio pós-sináptico? Intuitivo, certo? Não é assim que os canabinoides funcionam: eles são produzidos e liberados por neurônios pós-sinápticos, e agem em receptores de neurônios pré-sinápticos, inibindo-os.

Figura 6. A idiossincrasia da transmissão neural canabinoide: o neurônio pós-sináptico recebe um sinal do neurônio pré-sináptico e induz a produção de endocanabinoides a partir de lipídios de membrana. Esses endocanabinoides inibirão o neurônio pré-sináptico ao se ligar ao seu receptor CB1 ligado à proteína G.

4. Conclusão

Começamos nosso caminho rumo à compreensão dos processos básicos pelos quais as drogas, substâncias aparentemente ordinárias, alteram de forma tão profunda a percepção e a própria consciência humana. Com o discutido aqui, já temos a base para entender a ação de diversas drogas: cocaína, anfetaminas, cafeína, álcool, LSD, psilocina, MDMA, metilfenidato, maconha etc. Nos próximos posts, falaremos especificamente de cada uma delas, dando mais detalhes sobre os sistemas neurofisiológicos sobre os quais atuam.

Então, até breve.

Referências (por ordem de importância)

1. STAHL, S. M. Psicofarmacologia – bases neurocientíficas e aplicações práticas. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2013.

2. SACKS, O. A mente assombrada. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

3. DE GREGORIO, D. et al. d-Lysergic acid diethylamide (LSD) as a model of psychosis: mechanism of action and pharmacology. International journal of molecular sciences, v. 17, n. 11, p. 1953, 2016.

4. RICKLI, Anna et al. Receptor interaction profiles of novel psychoactive tryptamines compared with classic hallucinogens. European Neuropsychopharmacology, v. 26, n. 8, p. 1327-1337, 2016.

5. PERTWEE, R. G. Cannabinoid pharmacology: the first 66 years. British journal of pharmacology, v. 147, n. S1, 2006.

Figuras

1. "Astronaut Buzz Aldrin on the moon", NASA (modificado).

2. "Anatomy and Physiology", US National Cancer Institute's Surveillance, Epidemiology and End Results (SEER) Program.

3. STAHL, 2013.

4. https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/4/4c/Synapse_diag1.svg/476px-Synapse_diag1.svg.png

5. STAHL, 2013.

6. "Retrograde signal in endocannabinoid", Kenneth Han.

Abreviaturas

5HT. 5-hidroxitriptamina (serotonina).

cAMP. Monofosfato de adenosina cíclico.

CB1. Receptor canabinoide CB1.

COMT. Catecol-O-metiltransferase.

DA. Dopamina.

DAT. Transportador de dopamina.

DNA. Ácido desoxirribonucleico.

EAAT. Transportador de aminoácidos excitatórios.

GABA. Ácido gama-aminobutírico.

GAT. Transportador de GABA.

LDS. Dietilamida do ácido lisérgico.

MAO. Monoamina oxidase.

MDMA. 3,4-metilenodioximetanfetamina (ecstasy)

NA. Noradrenalina (norepinefrina).

NAT. Transportador de noradrenalina.

NMDA. N-metil-D-aspartato.

RNA. Ácido ribonucleico.

SER. Serotonina.

SERT. Transportador de serotonina.

SNC. Sistema nervoso central.

VIAAT. Transportador vesicular de aminoácidos inibitórios.

VMAT. Transportador vesicular de monoaminas.


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