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Meus poemas preferidos de João Barão

Já conhecia João do ensino médio no INEI-COC, mas conheci sua poesia apenas na faculdade de direito. Junto de José Renato e outros colegas, ele logo fez parte do Artimanha, um coletivo de arte que se tornaria muito frutífero nos anos seguintes, produzindo desde poemas até peças de teatro.

A poesia de João tem um lirismo notável; fala-se muito do sentimento pessoal do eu-lírico, não da forma carregada dos poetas românticos, mas com leveza e simplicidade. Os poemas curtos e a exploração da musicalidade das palavras fazem lembrar Leminski.

Aqui, apresento os meus poemas preferidos de uma coleção não editada denominada Por que tenho pés e não tenho prazo. Seu conteúdo foi revisado este ano, ainda que a maioria dos poemas já estivesse escrita em janeiro de 2016, quando primeiro os conheci.

já que o fim pode muito bem ser triste,

decidi ao menos começar por um pedaço feliz.

quando te vi,

descobri que tinha

medo de altura.

quando te ouvi,

descobri que tinha

coragem de pular.

quando sorriu-me:

pulei.

quando a senti,

não achei que caía, eu voava.

e de lá, tomei nota: há tanta vista no precipício,

que a queda pode ser

só mais um início.

quando despediu-me,

vi o chão mais de perto:

ossos quebrados

coração a b e r t o.

João explora o aspecto concreto da poesia em vários de seus poemas. Eles não são apenas lidos, mas vistos. Eu, que nunca fui fã de poesia concreta, gosto do uso minimalista que João faz de tal atributo; a forma concreta dificilmente é a protagonista do poema, mas apenas ajuda a expressar melhor seu conteúdo.

É o caso deste poeminha em questão. Vemos na primeira estrofe o precipício, depois o pulo. A segunda estrofe traz a queda se transformando em voo. Por fim, as últimas estrofes trazem novamente a queda e o chão, e até mesmo o coração, machucado e a b e r t o.

Adorei a alegoria que João fez neste poema, identificando um relacionamento à queda de um precipício. Quer dizer, falar que "pulou" no sentido de se arriscar com uma nova paixão é senso-comum; mas o paralelo que ele fez entre os medos e as coragens (de pular e de se relacionar), e entre o voo e o relacionamento que deu certo, e entre a queda e a decepção amorosa, foi muito bonito.

O poema também é muito musical, principalmente por conta das rimas bem feitas e, mais importantemente, da repetição de "quando" mais um verbo no passado.

QUANDO VOCÊ ME AMA?

não me venha com

mudar não é certo.

a terra, onde é mar,

um dia foi deserto.

assim como te amar,

nalgumas ondas te detesto.

mas amo sempre,

e de vez em quando.

Novamente, o uso recatado do concretismo. Aqui, ele se presta a traduzir o modo furtivo dos dois últimos versos, como se sussurrássemos sua contradição.

Gosto muito de como João simplesmente funde dois discursos diferentes na primeira estrofe, a partir do terceiro verso: não sabemos onde ele termina de falar de paisagens geográficas e maré e onde ele começa a falar dos próprios sentimentos. E tudo isso com cadência e rimas gostosas.

AS FOTOS MENTEM

ATÉ MESMO AS EMOÇÕES,

POR QUE NÃO MENTIRIAM

A POEIRA DAS CONSTELAÇÕES?

era uma vez, numa praia, um fotógrafo

que tirou uma foto do céu, à noite.

nela surgiram pontos brancos

em contraste com o fundo preto.

mostrava a foto a todos:

- Olha, o retrato das minhas estrelas!

mesmo sabendo que era apenas um pouco de areia.

afinal, qual a diferença entre uns grãos de poeira?

Este poema começa em seu título, que é em si mesmo sua primeira estrofe. Se os retratos são capazes de nos enganar com tanta facilidade quanto à felicidade das pessoas (exceto dos bebês, geralmente), imagina como elas poderiam nos enganar quanto a objetos distantes e pouco conhecidos, como as estrelas.

A cena é linda. Um fotógrafo numa praia, à noite, fotografa um céu. Infelizmente, o céu não tem estrelas. Eu não sei você, mas às vezes eu custo a contar um punhado de estrelas aqui de casa, por causa da iluminação artificial da babilônia. Acho que o mesmo aconteceria em uma praia de cidade grande.

Porém, a lente da câmera estava suja, com um pouco de areia. E aqueles grãozinhos de areia, tão pequenininhos, mimetizavam as estrelas, também pequenininhas, lá no céu preto.

É um poeminha simples, curto, mas capaz de trazer inúmeras reflexões.

Por exemplo, sobre nossa percepção do mundo a nosso redor e como muitas vezes somos "iludidos" pelos nossos próprios sentidos. No fim das contas, estrelas são objetos grandes ou pequenos? Se perguntarmos a uma criança que ainda não conhece a natureza astronômica das estrelas, ela certamente dirá que são pequenos. Afinal, elas parecem pequenas, e nós só sabemos que são gigantescas porque nos convencemos intelectualmente disso. Julgando simplesmente pela visão, parecem grãozinhos de área iluminados.

Isso pode soar besta para nós, que estamos cansados de saber que as estrelas são coisas gigantes que parecem pequenas por estarem muito longe; ora, existem razões físicas para que um objeto longínquo pareça menor do que de fato é. Mas distinguir o que é pequeno do que é distante não é algo que nascemos sabendo fazer. Nós precisamos aprender, pela experiência, que objetos pequenos na verdade podem ser objetos grandes e distantes.

Em seu livro Um antropólogo em Marte, Oliver Sacks conta a história de um paciente, Virgil, que voltou a enxergar 40 anos depois de, ainda na infância, ficar cego. Ele conta que Virgil não tinha "senso algum de tamanho ou perspectiva". O autor também conta uma anedota de pessoas que viveram a vida inteira em densas florestas tropicais, onde o campo de visão não passa de alguns metros; postas diante de paisagens abertas, essas pessoas esticavam os braços para tocar as montanhas, sem ideia de sua real distância e seu tamanho.

Nosso sentido da visão é uma fonte inesgotável de fascínio.

Também é interessante pensar sobre como grande, pequeno, longínquo, próximo ou, principalmente, fascinante, são atributos muito subjetivos. Grãos de areia são ridiculamente miúdos para nós, mas não tanto para um besouro. Da mesma forma, pensamos em estrelas como bolas descomunalmente enormes de hidrogênio, mas, "diante da vastidão do espaço e da imensidão do tempo", elas parecem minúsculos grãos de poeira.

O relativismo também é uma fonte inesgotável de fascínio.

Grãos de areia sobre fragmento de quartzo.

COMOVEU-ME SUA APATIA

bonito é lhe deixar na prateleira

posso te ver, posso tirar

a poeira.

posso não te pegar, até que perceba suas asas soprarem:

- Sua janela é perto.

e daí o salto é curto, é certo.

das fugas que deixei fugirem ao voltar a pé

do trabalho, os pés ouvi rugirem:

- Certificamos ao cronometrar, senhor,

o dia é eternidade de demora.

o ano é só piscar,

já foi embora.

o humano é quase que saltar pra página

final, onde lê-se:

E todos infartaram juntos.

não obstante a previsão afeta-me nada

quando ainda me vejo no raso.

já que tenho pés,

e não tenho prazo.

Este poeminha começa falando de um dilema em como lidamos com um passado e um presente agradáveis. Enquanto desejamos o presente, por ser onde estamos de fato vivendo, nós também temos um carinho especial pelo passado. Isso acontece porque, diferente do presente, o passado é pouco volátil: está lá, quietinho em nossa memória. Podemos esquecer alguns detalhes e até mesmo acrescentar outros, mas, em geral, nossas boas lembranças serão sempre boas lembranças. Podemos até deixá-las mais bonitas, tirar a poeira. O presente, por outro lado, é assustadoramente instável; de repente, não mais que de repente, do riso faz-se o pranto; da paixão, o pressentimento; do momento imóvel, o drama.

O passado é um refúgio seguro para nossos bons momentos, já que o presente permite que todos facilmente fujam pela janela.

Por fim, o futuro pode carregar esperanças e medos dos mais diversos, mas concordamos que, lá no final, nos sobrará a morte (por infarto ou outra doença). "Numa linha do tempo longa o bastante, a taxa de sobrevivência de todo mundo vai a zero". Mas agora, ainda jovens, com os pés rasos na água, não nos preocupa tanto o que parece estar lá longe. Nós queremos descobrir o que está à nossa volta, caminhar por essas águas. Como se tivéssemos apenas pés, não prazo.

Figura pela NASA.


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